O mal dos livros

03/08/2006

001 - O homem da camisa negra

Isto é o que tenho de começar por te contar. Aconteceu teria eu cinco, talvez seis anos. Aconteceu por causa do sangue. Eu tinha sangrado, sabes. Eu e o Jaime andávamos sempre a correr. E havia uma festa. Eu julguei que era uma festa, que tínhamos vindo a casa do Jaime porque havia uma festa. Foi essa a explicação que achei para tanta gente em casa deles. Uma festa de adultos, mesmo que estivessem todos de negro e não houvesse música.
Eu e o Jaime brincávamos, que os adultos pouco nos interessavam, e, na correria, eu fui contra qualquer coisa e comecei a sangrar do nariz. Sei que fiquei coberto de sangue e lembro-me de chorar, não por estar a sangrar, mas por ter medo que me batessem por me ter sujado.
Levaram-me da sala, limparam-me, assoaram-me, tirando o sangue, o ranho e as lágrimas. Vestiram-me de lavado com roupas do Jaime e depois tentaram deitar-me no quarto dele. Eu fingi dormir para que me deixassem sozinho. E quando fiquei em paz levantei-me para ver os brinquedos. Ele tinha um comboio. E carrinhos. E quando me cansei disso abri a porta do quarto e olhei para o corredor. Estava escuro, e era demasiado comprido, todo portas. Eu ouvia o ruido da festa, as vozes dos adultos na sala, mas ninguém podia saber que eu estava acordado. Resolvi experimentar outras portas. A casa de banho. Um armário. E depois um quarto.
Neste nunca tinha entrado. Pela porta entreaberta espreitei lá para dentro. Estava escuro e na cama estava deitado um homem, vestido e calçado. Fato preto e sapatos engraxados, de negro brilhante. Ao lado dele sentava-se outro homem, na beira da cama. Estava também vestido de negro, mas apenas de calças e camisa. Camisa negra. Foi isso que eu achei estranho. As camisas eram sempre brancas. Branco era o cabelo dele, a contrastar com a roupa. Ele olhou para mim. E sorriu. Eu disse:
- Ele está morto.
Não foi uma pergunta. Apenas disse o que percebera nesse momento, que o homem deitado estava morto.
O homem da camisa preta assentiu. E depois disse-me qualquer coisa. E por mais vinte anos não me lembrei dessas palavras.
A minha mãe apareceu então e ralhou-me, perguntando-me porque era mau, porque não ficava quieto e dormia como um bom menino e porque fora para ali, o que estava ali a fazer. Ia-me fazendo todas estas perguntas, numa voz sussurrada mas zangada, irritada, enquanto me pegava ao colo e levava de volta para a festa.
Achando que me devia desculpar, disse:
“Estava a conversar com aquele senhor.” e apontei para o fundo do corredor, para a porta que ela fechara cuidadosamente atrás de nós.
“Não sejas mentiroso!”
“Eu não sou mentiroso!”
“Então não digas disparates. Aquele senhor já não pode falar.”
“Ele falou comigo.”
“Ai, tanto disparate, vamos ter de pôr pimenta nessa língua.”
Embora não percebesse a que propósito vinha isto, alegrei-me um bocadito porque pimenta era coisa de adultos, e nunca me tinham deixado experimentar mesmo que eu pedisse.
Entrou na festa ainda comigo ao colo e riu-se para a tia Júlia, a avó do Jaime.
“Veja lá este tontinho. Entrou no quarto do senhor Augusto e disse-me que estava a falar com ele.”
A tia Júlia não se riu. Olhou para mim muito séria e só então é que eu percebi que devia ter feito uma grande asneira.
“Vem cá”, disse ela, e estendeu os braços para que eu passasse do colo da minha mãe para o colo dela. E depois sentou-se logo numa cadeira, que eu já era pesado. Aliás, já começava a ser estranho que me pegassem assim. Há muito tempo que eu não pedia colo e também já ninguém mo queria dar. Era difícil perceber se estavam mesmo zangadas comigo, com tanto mimo.
“Então, conta lá, que conversa era essa com o Augusto?”
Só então comecei a perceber que espécie de festa era aquela. Era o funeral do senhor Augusto, o avô do Jaime. Eu só o vira uma vez. Era o senhor que costumava ficar sentado num cadeirão, no quarto, às escuras. A razão porque nunca se podia fazer barulho nos fundos da casa. O motivo porque se tinha de fazer silêncio a certas horas do dia. Não era uma pessoa de quem eu gostasse muito. Até a festa dele era triste.
Compreendi que era ele quem estava deitado na cama, com os sapatos brilhantes, mesmo que não lhe tivesse visto a cara. E por isso disse:
“Não era com ele que eu estava a falar, era com o outro senhor.”
“Então, o que é isso? Agora pões-te a inventar histórias? O que é que te deu? Estás mesmo a querer levar uma palmada nesse rabiosque!” A minha mãe estava mesmo zangada comigo. Eu tentei começar a chorar, mas como não estava mesmo com vontade só devo ter conseguido fazer uma cara ridícula. Beiçinho, uma ameaça de choro fingido. A tia Júlia olhava para mim, séria, mas com vontade de se rir.
“E quem era esse senhor, diz lá à tia.”
“Não sei.”
“Como é que ele era?”
“Tinha uma camisa preta.”
Ela olhava-me fixamente. Aquele olhar que ela sempre teve, que não admitia mentiras.
“Cabelos brancos?”
“Sim.”
“Um fio de ouro, com uma cruz, por cima da camisa?
Esta pergunta era mais complicada. Fechei os olhos e tentei lembrar-me. Deve ter sido isso, juntamente com todo o interrogatório que impediu que me esquecesse do homem, mesmo tendo passado tanto tempo sem que a memória voltasse a trazer à tona este episódio que só agora, vinte anos depois, faz tanto sentido, explica tanto.
“Sim, o senhor tinha um colar.”
Então a tia Júlia sorriu um pouco. Voltou-se para a minha mãe.
“Deixa o miúdo, Marta, ele não está a mentir.”
“Mas tia, não estava lá mais ninguém!”
A tia Júlia voltou-se para mim e começou a pentear-me com a mão, que era coisa que me irritava que os adultos fizessem. Mas achei melhor ficar quieto. Eu estava nas boas graças dela e era melhor aproveitar.
“Estava sim, Marta. Mas tu não o podias ver.”
A minha mãe não disse nada. Ficou só a olhar para mim. Eu achei que já devia estar tudo bem por isso disse:
“Posso comer bolo?”
A tia Júlia fazia sempre bolos, fosse qual fosse a ocasião. Estava um em cima da mesa e eu tinha os olhos nele desde que chegara.

1 Comentário(s):

Em 1995 fui com uns colegas da faculdade passar a noite a Sintra. Começámos por tomar uns copos, depois fomos pular a cerca do castelo dos mouros e andar por lá aos tombos (ninguém tinha lanterna) e acabámos a noite numa vivenda abandonada e meio queimada, perto do Palácio da Pena. O sítio cheirava mal, estava escuro, frio e havia pirilampos. Ou seja, ideal para contarmos histórias de fantasmas.
A melhores da noite foram contadas pela Maria João, que tem um tio hipnotista e uma avó com amigas mediums. É um excelente repertório porque supostamente são todas baseadas na realidade.
De entre essas destacou-se a que se passou durante o velório do avô dela. O senhor falecido tinha sido colocado na cama do seu quarto enquanto se aguardava a chegada do caixão. Entretanto a casa foi-se enchendo de gente que vinha dar os pêsames embora ninguém fosse admitido no quarto. A certa altura, a avó da minha amiga espreitou para dentro do quarto e viu um homem vestido de negro sentado na cadeira ao lado da cama que sussurrava para o morto. Embora não soubesse quem ele era, resolveu não incomodar e voltou a fechar a porta e foi tratar de outras coisas. Mais tarde tentou saber quem era aquele homem mas mais ninguém o tinha visto nem ninguém tinha ideia de quem ele pudesse ser.

Nunca mais me esqueci desta história e, quando resolvi começar este folhetim, inspirei-me descaradamente nela.
Obrigado, Maria João!

By Blogger Daniel J. Skråmestø, at 4:30 da tarde  

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