O mal dos livros

31/10/2006

015 - A mensagem na despensa

No dia seguinte, antes de começar a minha “caça à bruxa”, resolvi investigar a questão dos livros, que era uma coisa que me intrigava muito mais. Chegado da escola, sentei-me na mesa da sala e, com a tia Júlia na cozinha e o Jaime ainda nas aulas de Judo, em vez de fazer os trabalhos de casa, resolvi contar os livros.
A sala estava o que se podia chamar “arrumada”. A dona Otília estivera ali de manhã e, por onde ela passava, nada ficava torto, desalinhado ou poeirento. Num primeiro olhar, ninguém diria que esta divisão tinha livros. Mal nos apercebiamos de alguns sobre a mesa, outros sobre o piano, mais uns junto ao sofá, outros no parapeito da janela, outros… Comecei a contar. 184. Cento e oitenta e quatro livros naquela sala. Eu nem acreditava. Estavam por todo o lado. Mal comecei a reparar neles, a sala transformou-se num ninho de víboras. Havia livros em cima, por baixo, ao lado e atrás do sofá. Nas mesas, nas cadeiras, dentro dos móveis, e até, espanto dos espantos, alguns arrumados nas prateleiras.
Transferi a obsessão para o resto da casa. Cozinha, casas de banho, corredor, quartos, armários e despensa. 1525. Mil quinhentos e vinte e cinco.
É claro que o meu súbito frenesi não passou despercebido à tia Júlia. Enquanto eu contava os livros na despensa (onde fui descobrir a “Mensagem” de Fernando Pessoa entre as latas de grão e o acúcar) ela veio meter o nariz para me perguntar, “Estás à procura de alguma coisa?”
“Não, mas adivinhe o que achei entre as latas do grão”
“A Mensagem, de Fernando Pessoa”.
“Como é que sabe?!”
“Fui eu que o pus aí. O que estás a fazer?”
“Estou a contar os livros que tem em casa”.
“Oh, mas aqui em casa não há quase livros nenhuns! Eu detesto estar sempre a tropeçar neles e ponho tudo no sotão.”
“Há um sotão neste prédio?”
“Toma!” Tirou do bolso uma chave e deu-ma. “Vai lá ver o sotão e deixa-me a despensa em paz.”

21/10/2006

014 - A origem dos livros

Comecei por perguntar à minha mãe, “o que faz a tia Júlia?”
“Que pergunta é essa? Ela não faz nada, quer dizer, trata da casa e de vocês e já é mais que muito.”
“Mas ela não faz mais nada? Nunca teve uma profissão?”
“Que eu saiba não.”
“Então e o dinheiro? Ela tem mais dinheiro do que nós.”
“António, não te quero a falar assim!” E pôs-se a olhar para mim de lado, a colher da sopa ainda na mão que lhe amparava o queixo. “A tia Júlia tem uma pensão que tira do que herdou da família e do marido”.
“Como é que sabes?”
“Como, como é que sei? Sei e pronto! Cala-te lá com isso e come a sopa. É muito feio falar de dinheiro à mesa.”

Nessa noite, já na cama, pus-me a pensar na vida da tia Júlia. Ela estava sempre em casa, ou pelo menos era essa a impressão que eu tinha, mas eu só passava lá as tardes e às vezes os serões. Mesmo o Jaime estava fora todas as manhãs, algumas tardes e ao fim de semana nós saíamos muitas vezes com a minha mãe. Também nas férias, fossemos nós nalguma excursão ou passeio, a tia Júlia recusava-se sempre a acompanhar-nos.
O que fazia ela?
Duas vezes por semana ia lá a Dona Otília fazer as limpezas e engomar a roupa (e continua a ir), por isso, de afazeres domésticos, a tia Júlia pouco mais fazia que cozinhar e, de vez em quando, coser as meias do Jaime. Era frequente eu encontrá-la a ler, sentada num cadeirão do escritório ou da sala mas, embora ela parecesse sempre à vontade para falar de qualquer assunto, da cultura helénica à teoria quântica, passando pelas filosofias de Nietzsche, Kant e Santo Agostinho, a julgar pelo que costumava ter nas mãos, ela pouco mais lia que policiais da Agatha Christie.
E ao pensar nisso nisso, ocorreu-me outra questão ainda mais estranha. De onde vinham os livros que apareciam lá por casa? É que não havia nenhuma grande estante ou biblioteca, nenhum tesouro de Próspero, e no entanto, naquela casa, tinham-me passado pelas mãos todas as comédias e tragédias de Shakespeare, todas as aventuras algumas vez escritas por Julio Verne, Tolkien, Enid Blyton e Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada. Já para não falar nos dicionários, enciclopédias e todo o género de tomos informativos ou fantásticos que apareciam de algum lado sempre que se precisava deles. O total oposto da minha casa, onde a minha mãe ordenava os livros, com um militarismo alemão, na estante que cobria uma parede inteira da sala e de onde eles raramente saíam.
Em casa da tia Júlia havia sempre livros. Mais livros até que na biblioteca da escola, que eu achava sempre diminuta, e, no entanto, eu não me conseguia recordar de alguma vez os ter ido procurar a uma prateleira. Eles estavam em todo o lado mas não eram postos em sítio nenhum, simplesmente flutuavam por ali. E quando eu pensava na enorme quantidade deles que já tinha lido, mesmo com apenas 13 anos, não conseguia perceber onde eles se iam enfiar antes e depois de serem lidos.
Nessa noite não dormi.

02/10/2006

013 - Educaçao, amor e ciume

Sabes, eu sempre senti um ciúme secreto do Jaime. Por ser ele quem vivia com a tia Júlia. E é estranho estar a dizer, escrever isto pela primeira vez. Ainda mais nestas circunstâncias tão…oh, tão irónicas!
Não duvides, por favor, do meu amor pela minha mãe. Mas há sempre um apelo especial naquilo que não se possui. Eu invejei muito tudo o que o Jaime tinha. Os brinquedos - mais que os meus e mais caros do que os meus. A escola privada - com uniformes, bons professores e festas de Natal com teatro e prendas. As aulas de tiro com arco, judo e natação. Mas acima de tudo, o facto de, ao fim do dia, ele continuar na casa da tia Júlia, de dormir lá, de ser, de facto, aquela a sua casa. De a tia Júlia ser mais dele do que minha.
Mas, é claro, isso eram tolices infantis, e eu sei o esforço que a tia Júlia sempre fez para nos tratar como iguais, mesmo com todas as diferenças de posse. E tão difícil que isso deve ter sido para ela, sei eu agora. Bastou-me olhar para ti, Joana…
Além disso, o Jaime sempre foi o mais generoso dos irmãos. O que tinha ele que eu não tivesse? Ele sempre se fez uma parte de mim. E vice versa.
Por isso eu tinha a certeza de que, se eu não sabia que as vizinhas chamavam bruxa à tia Júlia, menos o sabia ele. E foi por isso que resolvi descobrir o que se escondia de verdade por trás daquela história. Se algo houvesse naquilo que pudesse magoar o Jaime, devia primeiro magoar-me a mim.