O mal dos livros

12/11/2006

016 - alfabetos

Eu sempre julgara que o prédio terminava no quarto andar, onde vivia o Doutor Moreira, um senhor advogado que raramente víamos e que só parecia existir no Natal, quando ia lá a casa agradecer o bolo rei que a tia Júlia lhe mandava por mim e pelo Jaime, o seu comité natalício que distribuia bolos pela vizinhança. É que, embora ela se divertisse a desconstruir o nosso Natal com as suas histórias de cometas, rituais pagãos saturninos, ou o eterno favorito “Pai Natal ou São Nicolau - o discípulo de Frankenstein”, ela fazia sempre várias fornadas de bolo-rei para oferecer. E não só para os vizinhos (e isso era outra coisa estranha, como ela conhecia tanta gente mesmo que raramente saísse de casa).
Mas lá estava, uma porta oposta à do apartamento do Doutor Moreira, e, com a chave que a minha mão suada segurava, a fechadura abriu-se facilmente. Aí havia umas escadas, pintadas com tinta esmalte vermelha, vi eu, assim que acendi o interruptor ao lado da ombreira. E, lá em cima, uma única divisão a todo o tamanho do prédio, completamente atulhada de livros.
Não vale a pena começares a imaginar um sotão escuro e poeirento, como costumam ser nos livros de aventura e mistério. A tia Júlia gastara bastante dinheiro a pôr aquele sitio em condições, fiquei a saber, quando mais tarde lhe expressei a minha admiração. Depois de comprar aos vizinhos as partes que lhes cabiam no tempo em que fora uma arrecadação do condomínio, húmida e poeirenta, a tia Júlia reconstruira praticamente o sotão todo e instalara electricidade, um ar condicionado e usara materiais e vernizes a que os insectos não acham grande piada. E, como o pé direito era relativamente alto na maior parte do sotão, apesar da quantidade absurda de livros, tinha-se a sensação de estar num sítio espaçoso e arrumado. Não era para admirar. Fiquei também a saber depois que, semanalmente, a dona Otília passava ali uma manhã com o aspirador.
A minha primeira reacção, plantado ao cimo das escadas, foi de espanto. E depois senti-me como se tivesse ganho a lotaria. Aquilo eram livros para ler até ao fim da vida! Avancei por aqueles corredores de papel em êxtase salivante e reverência mística. Mas, em pouco mais de meia-hora, depois de explorar estantes, caixotes e pilhas de livros, a minha excitação inicial esmorecera até se tornar num profundo e quase magoado desapontamento. É que apenas uma pequeníssima parte daqueles livros era em português.
A isto seguiu-se uma inédita mistura de impotência com fascínio. É que havia de tudo: livros novos misturados com velhos, ficção com tratados científicos, revistas entremeadas com enciclopédias encadernadas. Mas o verdadeiro espanto era a diversidade de línguas. Era uma autêntica babilónia. Porque não havia apenas livros em confortável inglês, françês, espanhol, italiano ou alemão… havia também livros nos alfabetos e línguas mais delirantes, começando por grego ou russo e indo do árabe para o geórgio, tailandês, indiano… e por aí fora até chinês e japonês. Não que eu conseguisse exactamente destinguí-los, ou soubesse sequer dar-lhes nomes como cirílico, cóptico ou aramaico, mas a minha cultura visual era suficiente para distinguir coisas que pareciam “grego” de outras que pareciam “árabe” e outras que pareciam “chinês”.
Fiquei por ali ainda algum tempo, hipnotizado por imagens, alfabetos e pela esmagadora constatação de que o mundo e a humanidade eram uma coisa muito grande. Senti-me minúsculo. Eu pouco mais era que um rato naquele sotão.
E depois senti uma certa raiva para com a tia Júlia. Era tão típico dela ter-me mandado para ali sózinho, sem a mínima explicação, sem o menor aviso. O que era isto? Uma lição de humildade para o rapazinho que apanhava porrada na escola porque lia mais do que os outros e tirava “excelentes” nos testes de português? Que gostava de assustar os professores citando Fernando Pessoa e fazendo metáforas com referências a Milton, Dante, Camões, Virgílio e Homero?
E por outro lado, eu tinha a certeza de que ela estaria lá em baixo, a contar todos os minutos que eu passasse ali e não deixaria de olhar, com aquele seu falso desinteresse de coruja, para qualquer livro que eu decidisse levar para ler.
Levantei-me numa fúria e decidi que dali não levaria nada e que iria fingir que nada daquilo me interessava, só para a magoar.
Mas sabes, (eu sei que sabes), há um magnetismo tão grande nos livros… Se eu não percebia como é que na casa da tia Júlia os livros que se queria e precisava apareciam logo ali ao nosso lado, mais estranho ainda é o fenómeno que já vivi em incontáveis livrarias e bibliotecas. De, de repente, de entre toda uma enormidade de volumes, aparecer um que temos de agarrar, que sabemos, com uma certeza que só se equipara à certeza do amor, ter lá dentro tudo o que precisamos para dar descanso à mente e ao espírito.
Eu já tinha um pé no primeiro degrau da escada quando vi um livro que me fez parar. E depois de pegar nele, virá-lo, desfolhá-lo, cheirá-lo, amaldiçoei-me a mim próprio por não ser capaz de manter uma decisão simples. Tive de o levar.
Era um livro até bastante pequeno, bastante recente, bastante “barato”. Uma edição brasileira de um original inglês. O título era: “Decifrando as runas vikings”.

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