O mal dos livros

16/12/2006

020 - Um bom escuteiro

Foi ele quem correu para mim e me ajudou a levantar. Enquanto me observava, tentando ver se eu tinha partido alguma coisa, observei-o eu a ele, ambos indiferentes à histeria do Jaime e da tia Júlia que saltitavam aflitos e preocupados à nossa volta.
Ele era bastante novo, bastante bonito e com uns olhos ternos mas decididos, que eram a sua maior arma, tal como a voz. Davam-lhe a liderança em qualquer situação. E no entanto, logo nesse momento eu soube que estava algo errado. Que o padre Matos não devia ser padre. Agora sei que o estava a comparar com outra pessoa, mas foi isso que, felizmente, me fez construir desde logo uma reserva em relação a ele.
Ninguém teve a mínima dúvida quando ele anunciou que eu estava bem, que era só o nariz a sangrar e alguns arranhões. Ele fora chefe de escuteiros, disse-nos, e tinha experiência nestas coisas. Os miúdos estavam sempre a aleijar-se.
A tia Júlia estava visívelmente mais aliviada, mas isso não livrou o Jaime de um raspanete. Enquanto ela corria a buscar algodão e água oxigenada para me limpar, ia desfiando a série de castigos que o iam ocupar durante a semana.
O padre Matos aproveitou a saída dela para me dizer que eu já podia tirar a revista pornográfica de dentro das calças. Ele sentira o livro das runas, quando me apalpara para ver se tinha costelas partidas. Eu assim fiz, sem me rir da “piada” dele, mais para aliviar o incómodo do que para lhe explicar que aquele volume não era nada do que ele julgava. O Jaime nem achou estranho que eu estivesse a esconder um livro, mas ambos olharam curiosos para a capa quando o pousei na secretária. E depois olharam para mim, como se a queda me tivesse afectado o juízo. Mas a tia Júlia voltou e o caos dos primeiros socorros acabou por desviar as atenções e nos levar para a sala, onde ela depois serviu chá e bolos para repor a calma e a ordem. O padre Matos contou-nos histórias dos escuteiros e, sendo ele tão absolutamente magnético e divertido, assim se insinuou quase imediatamente nas nossas vidas, sem darmos quase por isso, conquistando imediatamente a afeição do Jaime e da tia Júlia, só por me ter levantado do chão e nos ter feito rir nessa tarde com anedotas de adolescentes a cagar no mato.
E eu ria-me também, e tentava atribuir aquela sensação de que algo estava mal a todos os acontecimentos e neuroses do meu dia. Muito tempo passou até me ocorrer perguntar o que fora o padre Matos fazer a casa da tia Júlia naquela tarde. Tempo demais. Anos demais.
Como pude ser tão cego?

04/12/2006

019 - Sapatos pretos

Deixei-me estar na cozinha um bocado, mas quando percebi que tinham chegado visitas e que a tia Júlia as ia receber na sala, não me apeteceu ficar sozinho a sentir-me miserável. O Jaime já tinha voltado da aula de judo e estava no quarto dele, sentado na cama, com os livros da escola espalhados à volta, embrenhado nos trabalhos de matemática.
“Sabes onde estive?”, perguntei-lhe.
“A Vó disse que tinhas ido ao sotão.”
“Sabias do sotão e já lá foste?”
“Claro que já lá fui!”
“Eu não sabia que havia um sotão.”
O Jaime levantou os olhos da matemática.
“É giro não, é? Tem montes de tralha.”
“Porque é que nunca ninguém me disse que havia uma biblioteca no sotão?”
“Julguei que sabias.”
“Não. Não sabia.”
“Isso é porque nunca prestas atenção a nada.”
E dito isto voltou a concentrar-se nos trabalhos de casa. Eu sentei-me na cadeira da secretária, a apurar uma fúria silenciosa. Sentia o livro debaixo do cinto das calças a magoar-me a barriga e só me apetecia pegar nele e atirá-lo à cabeça do Jaime.
Ele não tardou a estranhar o meu silêncio.
“O que foi?”
“Nada!”
Ele ficou a olhar para mim até que disse:
“Anda cá, vou-te mostrar o que aprendi hoje!”. Tirou os livros da cama e pôs-se de pé a saltitar no colchão.
“Não me apetece.”
“Vá lá! Não sejas maricas. Eu não te aleijo.”
Eu acedi porque não estava com cabeça para inventar uma desculpa para fugir áquilo. O Jaime tentava sempre ensinar-me todos os novos golpes de judo que aprendia. Desta vez eu tinha de ficar atrás dele e tentar apertá-lo com uma espécie de abraço. E quando pus os braços à volta dele, e enquanto ele os ajeitava para que estivessem no sítio certo, o calor do corpo e o cheiro a lavado do cabelo dele encheram-me de uma tristeza súbita. Foi esse o problema. Eu devia estar a simular um ataque, mas estava mais a derreter-me de encontro ao corpo dele. Antes que pudesse sequer aperceber-me devidamente do que se passava, ele deu-me um puxão e eu voei por cima do ombro dele com tal velocidade que, em vez de aterrar no colchão, como era suposto, fui bater na secretária e depois nos tacos do chão. Ficou tudo negro por uns segundos e embora não sentisse nenhuma dor nesse momento, sabia que assim que me levantasse e o susto passasse me ia sentir todo partido, por isso deixei-me ficar deitado, na posição em que tinha caído e, como me sentia algo miserável, resolvi juntar uns gemidos e umas lágrimas ao sangue que me escorria do nariz.
O Jaime, alarmado, ajoelhou-se no colchão e debruçou-se repetindo incessantemente, “Estás bem?! Estás bem?!” E passos no corredor anunciaram a chegada da tia Júlia que perguntava “O que é que se passa?! O que é que vocês fizeram agora?”. Com ela vinha também um homem, a visita a quem ela fora abrir a porta. Deitado no chão, eu só lhe via os pés, os sapatos negros brilhantes, as calças pretas. Foi para o ver melhor que me resolvi levantar, em vez de continuar com a choradeira e a fita que tinha começado a fazer. Ele estava todo vestido de negro, exceptuaando o revelador colarinho branco e o crucifixo dourado que lhe pendia de um cordão ao peito. E embora eu nunca tivesse conhecido nenhum padre, havia algo de perturbadoramente familiar na sua figura. Algo que, como te disse, levou todos estes anos até me voltar à memória.