O mal dos livros

15/01/2007

022-Socializar

Houve algumas tentativas de nos pôr a socializar com outros “jovens”, todas falhadas. Eu não tinha nada para conversar com outros alunos da Runa nas festas de fim de ano lectivo em que tocávamos todos juntos, uns para os outros, e o Jaime contentava-se a mandar para o colchão todos os colegas do Judo sem se interessar em conhecê-los. Até a tia Júlia, dizendo que nos achava “demasiado incestuosos”, convenceu-nos uma vez a ir acampar com o padre Matos e um grupo de antigos escuteiros.
O padre Matos tinha começado a aparecer com alguma regularidade lá por casa. Ele parecia apreciar as discussões teológicas que tinhamos com ele, mesmo que eu e o Jaime o deixássemos com os cabelos em pé . As nossas opiniões sobre deus não tinham nada de católicas. Chamava-nos “os pequenos comunistas”. E eu levava-o a sério e tentava-lhe explicar que embora os meus pontos de vista sobre a função do homem em relação ao mundo tivessem de facto uma base socialista, havia ainda assim um sentido gnóstico em mim que me levava a achar as teorias marxistas um tanto áridas. Mas ele nunca lera Marx e não percebia bem do que é que eu estava a falar, por isso não me levava a sério. Acho até que ele não sabia bem o que queria dizer “gnóstico”...
Não que ele nos tentasse pregar catolicismo. Nada que se parecesse. Desde o pricípio que ele percebera que éramos um caso perdido, mas acho que ele gostava das nossas discussões precisamente para reassegurar a sua própria fé. Não há como ter alguém contra nós para nos ajudar a solidificar crenças e argumentos. E acho que ele devia também estar um pouco farto de falar com as beatas, que embora fossem as da freguesia da Sé de Lisboa, pouco se desviavam nas suas conversas dos dogmas de um catolicismo supersticioso de aldeia.
Assim aconteceu que, tendo-se ele tornado uma visita cada vez mais frequente, a tia Júlia acabou por lhe pedir para ele nos levar “a arejar” num passeio de antigos escuteiros que ele mencionara “por acaso” numa conversa.

03/01/2007

021- Runas

Eu sei.
É que o que mais me perturbara naquele dia fora o abraço que eu dera ao Jaime e as mãos do padre Matos. Tudo o resto perdeu importância, nessa noite, na cama. A insónia das noites que se seguiram não era pela bruxa da família, nem pelo sotão dos livros, nem nada que se parecesse. Eu estava obcecado. Sexo, sexo, sexo. Dos 13 aos 16 anos não pensei noutra coisa. Tudo o resto era piloto automático. Talvez julgues que exagero, mas não. Apenas me controlava muito bem. Mas eu era como um vulcão, prestes a explodir ao menor descuido. Foi por isso também que inventei as aulas de norueguês. Eu precisava de mais coisas para me ocupar. Para me distrair.
Eu tinha devorado o livro das runas num fôlego e claro que, na aula de piano seguinte, massacrei a Runa com tudo o que tinha aprendido. Perguntei-lhe se ela sabia que as runas só tinham traços verticais e diagonais porque isso tornava mais fácil gravá-las na madeira, no sentido dos veios. Se ela sabia que o alfabeto das runas se chamava Futhark e que a sua versão mais comum tinha apenas 16 letras.
Claro que ela sabia. Não que fosse uma coisa normal de se saber mas o nome dela fizera-a interessar-se por isso. E depois falou-me de outro tipo de runas, não a escrita, mas as canções da região de Finnskogen, de onde a família dela era originária.
Explicou-me que “Rune” é uma palavra de origem germânica que significa segredo, ou magia, e isso significa que as canções rune são canções mágicas com origem shamanista. Há também runas líricas ou épicas, mas as mais vulgares são as de encantamento. Eram usadas por pessoas capazes de, com emoção e poder, cantar melodias improvisadas com pouco mais de cinco notas que repetiam durante horas para fazer curas ou criar protecções mágicas.
Eu perguntei-lhe mais coisas sobre o nome dela. Porque é que ela se chamava Runa, se a palavra norueguesa era “rune”. E ela explicou-me que era o mesmo que se chamar “a rune”, porque em norueguês o artigo era incluido no final do substantivo.
E porque é que o sobrenome dela se escrevia Eikaas, mas se lia “aicós”. E ela explicou-me que aa era o equivalente à letra å (que se lê “ó”), umas das três vogais extra que o norueguês acrescenta ao tradicional alfabeto latino. E que esse nome significava “colina dos carvalhos”.
Eu estava tão fascinado que lhe perguntei se ela me podia ensinar norueguês. E ela disse que sim.
A tia Júlia e a minha mãe também não disseram que não e, graças a isso, nos meses seguintes atazanei o Jaime com os meus ridículos e básicos conhecimentos de uma língua estranha, que nunca nenhum de nós tinha ouvido antes. O suficiente para ele se roer de inveja (era precisamente esse o objectivo). Até talvez tenha sido um pouco demais porque depois ele começou a pedir à tia Júlia para aprender também norueguês. Mas ela não foi na cantiga. Ela raramente cedia aos nossos caprichos. Em vez disso pô-lo a aprender árabe. Como se fosse a mesma coisa…
Mas o curioso é que, quanto mais nos afastávamos nas disciplinas de estudo, ele com os desportos e o árabe e eu com a música e o norueguês, mais próximos nos sentíamos. Passávamos fins de tarde e fins de semana juntos, a conversar, a construir o nosso pequeno mundo a partir do que cada um trazia, dizia, pensava das suas diferentes disciplinas. Mas éramos párias. Era difícil fazer outros amigos, na escola ou fosse onde fosse. Não conseguíamos pertencer a sítio nenhum senão juntos. E isso tornou-se cada vez mais… sufocante.

16/12/2006

020 - Um bom escuteiro

Foi ele quem correu para mim e me ajudou a levantar. Enquanto me observava, tentando ver se eu tinha partido alguma coisa, observei-o eu a ele, ambos indiferentes à histeria do Jaime e da tia Júlia que saltitavam aflitos e preocupados à nossa volta.
Ele era bastante novo, bastante bonito e com uns olhos ternos mas decididos, que eram a sua maior arma, tal como a voz. Davam-lhe a liderança em qualquer situação. E no entanto, logo nesse momento eu soube que estava algo errado. Que o padre Matos não devia ser padre. Agora sei que o estava a comparar com outra pessoa, mas foi isso que, felizmente, me fez construir desde logo uma reserva em relação a ele.
Ninguém teve a mínima dúvida quando ele anunciou que eu estava bem, que era só o nariz a sangrar e alguns arranhões. Ele fora chefe de escuteiros, disse-nos, e tinha experiência nestas coisas. Os miúdos estavam sempre a aleijar-se.
A tia Júlia estava visívelmente mais aliviada, mas isso não livrou o Jaime de um raspanete. Enquanto ela corria a buscar algodão e água oxigenada para me limpar, ia desfiando a série de castigos que o iam ocupar durante a semana.
O padre Matos aproveitou a saída dela para me dizer que eu já podia tirar a revista pornográfica de dentro das calças. Ele sentira o livro das runas, quando me apalpara para ver se tinha costelas partidas. Eu assim fiz, sem me rir da “piada” dele, mais para aliviar o incómodo do que para lhe explicar que aquele volume não era nada do que ele julgava. O Jaime nem achou estranho que eu estivesse a esconder um livro, mas ambos olharam curiosos para a capa quando o pousei na secretária. E depois olharam para mim, como se a queda me tivesse afectado o juízo. Mas a tia Júlia voltou e o caos dos primeiros socorros acabou por desviar as atenções e nos levar para a sala, onde ela depois serviu chá e bolos para repor a calma e a ordem. O padre Matos contou-nos histórias dos escuteiros e, sendo ele tão absolutamente magnético e divertido, assim se insinuou quase imediatamente nas nossas vidas, sem darmos quase por isso, conquistando imediatamente a afeição do Jaime e da tia Júlia, só por me ter levantado do chão e nos ter feito rir nessa tarde com anedotas de adolescentes a cagar no mato.
E eu ria-me também, e tentava atribuir aquela sensação de que algo estava mal a todos os acontecimentos e neuroses do meu dia. Muito tempo passou até me ocorrer perguntar o que fora o padre Matos fazer a casa da tia Júlia naquela tarde. Tempo demais. Anos demais.
Como pude ser tão cego?

04/12/2006

019 - Sapatos pretos

Deixei-me estar na cozinha um bocado, mas quando percebi que tinham chegado visitas e que a tia Júlia as ia receber na sala, não me apeteceu ficar sozinho a sentir-me miserável. O Jaime já tinha voltado da aula de judo e estava no quarto dele, sentado na cama, com os livros da escola espalhados à volta, embrenhado nos trabalhos de matemática.
“Sabes onde estive?”, perguntei-lhe.
“A Vó disse que tinhas ido ao sotão.”
“Sabias do sotão e já lá foste?”
“Claro que já lá fui!”
“Eu não sabia que havia um sotão.”
O Jaime levantou os olhos da matemática.
“É giro não, é? Tem montes de tralha.”
“Porque é que nunca ninguém me disse que havia uma biblioteca no sotão?”
“Julguei que sabias.”
“Não. Não sabia.”
“Isso é porque nunca prestas atenção a nada.”
E dito isto voltou a concentrar-se nos trabalhos de casa. Eu sentei-me na cadeira da secretária, a apurar uma fúria silenciosa. Sentia o livro debaixo do cinto das calças a magoar-me a barriga e só me apetecia pegar nele e atirá-lo à cabeça do Jaime.
Ele não tardou a estranhar o meu silêncio.
“O que foi?”
“Nada!”
Ele ficou a olhar para mim até que disse:
“Anda cá, vou-te mostrar o que aprendi hoje!”. Tirou os livros da cama e pôs-se de pé a saltitar no colchão.
“Não me apetece.”
“Vá lá! Não sejas maricas. Eu não te aleijo.”
Eu acedi porque não estava com cabeça para inventar uma desculpa para fugir áquilo. O Jaime tentava sempre ensinar-me todos os novos golpes de judo que aprendia. Desta vez eu tinha de ficar atrás dele e tentar apertá-lo com uma espécie de abraço. E quando pus os braços à volta dele, e enquanto ele os ajeitava para que estivessem no sítio certo, o calor do corpo e o cheiro a lavado do cabelo dele encheram-me de uma tristeza súbita. Foi esse o problema. Eu devia estar a simular um ataque, mas estava mais a derreter-me de encontro ao corpo dele. Antes que pudesse sequer aperceber-me devidamente do que se passava, ele deu-me um puxão e eu voei por cima do ombro dele com tal velocidade que, em vez de aterrar no colchão, como era suposto, fui bater na secretária e depois nos tacos do chão. Ficou tudo negro por uns segundos e embora não sentisse nenhuma dor nesse momento, sabia que assim que me levantasse e o susto passasse me ia sentir todo partido, por isso deixei-me ficar deitado, na posição em que tinha caído e, como me sentia algo miserável, resolvi juntar uns gemidos e umas lágrimas ao sangue que me escorria do nariz.
O Jaime, alarmado, ajoelhou-se no colchão e debruçou-se repetindo incessantemente, “Estás bem?! Estás bem?!” E passos no corredor anunciaram a chegada da tia Júlia que perguntava “O que é que se passa?! O que é que vocês fizeram agora?”. Com ela vinha também um homem, a visita a quem ela fora abrir a porta. Deitado no chão, eu só lhe via os pés, os sapatos negros brilhantes, as calças pretas. Foi para o ver melhor que me resolvi levantar, em vez de continuar com a choradeira e a fita que tinha começado a fazer. Ele estava todo vestido de negro, exceptuaando o revelador colarinho branco e o crucifixo dourado que lhe pendia de um cordão ao peito. E embora eu nunca tivesse conhecido nenhum padre, havia algo de perturbadoramente familiar na sua figura. Algo que, como te disse, levou todos estes anos até me voltar à memória.

30/11/2006

018 - O destino dos livros

Enquanto descia as escadas, de volta ao apartamento da tia Júlia, escondi o livro debaixo da camisola. Estava decidido a não mostrar fraqueza, orgulho ferido ou o que fosse.
Ela estava na cozinha, a arranjar feijão verde, e quando eu entrei levantou apenas os olhos por um segundo.
“Então? Achaste alguma coisa que te interessasse?”
“Não.”
“É natural. É demasiada tralha.”
“De onde vieram aqueles livros. Não são seus, pois não?”
“Agora são. Mas vieram de muitos sitios diferentes. A maioria foi herdada. A família do Augusto lia muito.”
“Porque não os dá?”
“Porque havia de o fazer? E a quem havia de os dar?”
“Não os vai ler todos, pois não? Podia doá-los a uma biblioteca.”
“Mas eu gosto de cuidar deles. E os livros encontram sempre os seus leitores. Tarde ou cedo eles chamam alguém para os ler. Nem que leve anos... ou séculos... Não te preocupes por eles estarem fechados. Não estão. Os livros têm uma vontade própria e só se deixam ler quando querem, não achas?”
“Não sei.”
“Trancaste a porta e trouxeste a chave?”
“Sim.”
“Então guarda-a. Fica essa para ti. E depois, quando acabares de ler esse livro que tens escondido na camisola, volta a pô-lo lá.”
Felizmente a campainha tocou nesse momento e a tia Júlia foi abrir a porta sem ligar ao facto de eu ter corado até à ponta dos cabelos.

017 - Entretanto, num telemovel em Salzburgo

Começou a nevar. Parei de escrever porque estava a ficar com dores no pulso. Bem me arrependo de não ter trazido o meu iBook. Não me lembro de alguma vez ter escrito tanto à mão. Mas preciso disto. No momento em que fui para a janela encostar a testa ao vidro para me refrescar (estes austríacos são uns fanáticos do aquecimento central) o meu cérebro voltou ao caos dos últimos dias. É demasiado. Escrever ajuda-me a focar e sinto que as coisas que te devo dizer são coisas que eu próprio preciso saber, mesmo que sejam memórias minhas. A nossa condição de humanos é tão imperfeita… Fazer sentido das coisas não é o mesmo que recordá-las e muito menos vivê-las na pele...
Depois também estive a ver televisão, mas nem o canal porno (grátis!) me conseguiu distrair. É esta certeza de que o Jaime está em perigo que me deixa completamente desfeito. Como ele estava diferente em tua casa! Como pode uma semana mudar tanto assim uma pessoa?
Que pergunta…eu sei. A mesma semana fez com que eu agora nem me reconheça no espelho. Esta barba, esta cicatriz.
Ele está em perigo e é por minha causa. Eu sei. Sinto-o. Porque outro motivo me esconderia ele tanta coisa? Se a seta com que me fez esta ferida me tivesse atingido o coração eu não duvidaria por um segundo de que foi lançada por amor. Felizmente ele tem boa pontaria... e esta ferida não é nada. O que me dói é que ele julgue que me pode proteger mantendo-me longe e ignorante do que se passa. Que pateta. Que idiota!
E como eu estou preocupado, Joana. É que ele é um bocado de mim, e não adianta que seja ele a sofrer em vez de mim. A dor é sentida pelos dois (tu viste como ele chorou por me ter ferido). E ele É meu irmão. MEU irmão!

- várias frases riscadas até se tornarem ilegíveis -

Desculpa, não ligues a esta riscalhada toda.
Aconteceu uma coisa estranha agora mesmo. Enquanto me tentava acalmar voltei a tentar ligar para o telemóvel do Jaime, como tinha feito todos os dias, várias vezes ao dia, a semana passada. Mas depois daquela noite, não sei porquê fiquei convencido que ele não o tinha, que talvez o tivesse perdido ou deixado nalgum sítio. E mesmo enquanto vinha para aqui, e enquanto corria a cidade e ligava para tudo o que é hotel em Salzburgo não me ocorreu voltar a ligar-lhe.
E não sei porquê, fiz isso agora. Ou antes, sei muito bem: desespero irracional.
Mas, em vez do sinal de desligado que estava à espera, o telefone tocou. Ninguém atendeu, mas só ouvir-lhe a voz no gravador de mensagens encheu-me de alegria. E fiquei tão surpreendido que não soube o que dizer e não deixei mensagem. Por isso voltei a ligar. Mas o telemóvel estava de novo desligado.
Não sei como interpretar isto. Ou ele tem o telefone e não quer mesmo falar comigo ou então outra pessoa estava a mexer nele. E porque desligaria alguém o telefone logo depois de eu tentar telefonar? Se era ele quem o tinha na mão então deve ter visto no écran que era eu quem estava a ligar. E se não era ele… oh merda!

Roí as unhas e comi o chocolate do mini bar (o preço é uma roubalheira, mas que se lixe). Já estou mais calmo.

Voltemos àquela tarde.

12/11/2006

016 - alfabetos

Eu sempre julgara que o prédio terminava no quarto andar, onde vivia o Doutor Moreira, um senhor advogado que raramente víamos e que só parecia existir no Natal, quando ia lá a casa agradecer o bolo rei que a tia Júlia lhe mandava por mim e pelo Jaime, o seu comité natalício que distribuia bolos pela vizinhança. É que, embora ela se divertisse a desconstruir o nosso Natal com as suas histórias de cometas, rituais pagãos saturninos, ou o eterno favorito “Pai Natal ou São Nicolau - o discípulo de Frankenstein”, ela fazia sempre várias fornadas de bolo-rei para oferecer. E não só para os vizinhos (e isso era outra coisa estranha, como ela conhecia tanta gente mesmo que raramente saísse de casa).
Mas lá estava, uma porta oposta à do apartamento do Doutor Moreira, e, com a chave que a minha mão suada segurava, a fechadura abriu-se facilmente. Aí havia umas escadas, pintadas com tinta esmalte vermelha, vi eu, assim que acendi o interruptor ao lado da ombreira. E, lá em cima, uma única divisão a todo o tamanho do prédio, completamente atulhada de livros.
Não vale a pena começares a imaginar um sotão escuro e poeirento, como costumam ser nos livros de aventura e mistério. A tia Júlia gastara bastante dinheiro a pôr aquele sitio em condições, fiquei a saber, quando mais tarde lhe expressei a minha admiração. Depois de comprar aos vizinhos as partes que lhes cabiam no tempo em que fora uma arrecadação do condomínio, húmida e poeirenta, a tia Júlia reconstruira praticamente o sotão todo e instalara electricidade, um ar condicionado e usara materiais e vernizes a que os insectos não acham grande piada. E, como o pé direito era relativamente alto na maior parte do sotão, apesar da quantidade absurda de livros, tinha-se a sensação de estar num sítio espaçoso e arrumado. Não era para admirar. Fiquei também a saber depois que, semanalmente, a dona Otília passava ali uma manhã com o aspirador.
A minha primeira reacção, plantado ao cimo das escadas, foi de espanto. E depois senti-me como se tivesse ganho a lotaria. Aquilo eram livros para ler até ao fim da vida! Avancei por aqueles corredores de papel em êxtase salivante e reverência mística. Mas, em pouco mais de meia-hora, depois de explorar estantes, caixotes e pilhas de livros, a minha excitação inicial esmorecera até se tornar num profundo e quase magoado desapontamento. É que apenas uma pequeníssima parte daqueles livros era em português.
A isto seguiu-se uma inédita mistura de impotência com fascínio. É que havia de tudo: livros novos misturados com velhos, ficção com tratados científicos, revistas entremeadas com enciclopédias encadernadas. Mas o verdadeiro espanto era a diversidade de línguas. Era uma autêntica babilónia. Porque não havia apenas livros em confortável inglês, françês, espanhol, italiano ou alemão… havia também livros nos alfabetos e línguas mais delirantes, começando por grego ou russo e indo do árabe para o geórgio, tailandês, indiano… e por aí fora até chinês e japonês. Não que eu conseguisse exactamente destinguí-los, ou soubesse sequer dar-lhes nomes como cirílico, cóptico ou aramaico, mas a minha cultura visual era suficiente para distinguir coisas que pareciam “grego” de outras que pareciam “árabe” e outras que pareciam “chinês”.
Fiquei por ali ainda algum tempo, hipnotizado por imagens, alfabetos e pela esmagadora constatação de que o mundo e a humanidade eram uma coisa muito grande. Senti-me minúsculo. Eu pouco mais era que um rato naquele sotão.
E depois senti uma certa raiva para com a tia Júlia. Era tão típico dela ter-me mandado para ali sózinho, sem a mínima explicação, sem o menor aviso. O que era isto? Uma lição de humildade para o rapazinho que apanhava porrada na escola porque lia mais do que os outros e tirava “excelentes” nos testes de português? Que gostava de assustar os professores citando Fernando Pessoa e fazendo metáforas com referências a Milton, Dante, Camões, Virgílio e Homero?
E por outro lado, eu tinha a certeza de que ela estaria lá em baixo, a contar todos os minutos que eu passasse ali e não deixaria de olhar, com aquele seu falso desinteresse de coruja, para qualquer livro que eu decidisse levar para ler.
Levantei-me numa fúria e decidi que dali não levaria nada e que iria fingir que nada daquilo me interessava, só para a magoar.
Mas sabes, (eu sei que sabes), há um magnetismo tão grande nos livros… Se eu não percebia como é que na casa da tia Júlia os livros que se queria e precisava apareciam logo ali ao nosso lado, mais estranho ainda é o fenómeno que já vivi em incontáveis livrarias e bibliotecas. De, de repente, de entre toda uma enormidade de volumes, aparecer um que temos de agarrar, que sabemos, com uma certeza que só se equipara à certeza do amor, ter lá dentro tudo o que precisamos para dar descanso à mente e ao espírito.
Eu já tinha um pé no primeiro degrau da escada quando vi um livro que me fez parar. E depois de pegar nele, virá-lo, desfolhá-lo, cheirá-lo, amaldiçoei-me a mim próprio por não ser capaz de manter uma decisão simples. Tive de o levar.
Era um livro até bastante pequeno, bastante recente, bastante “barato”. Uma edição brasileira de um original inglês. O título era: “Decifrando as runas vikings”.

31/10/2006

015 - A mensagem na despensa

No dia seguinte, antes de começar a minha “caça à bruxa”, resolvi investigar a questão dos livros, que era uma coisa que me intrigava muito mais. Chegado da escola, sentei-me na mesa da sala e, com a tia Júlia na cozinha e o Jaime ainda nas aulas de Judo, em vez de fazer os trabalhos de casa, resolvi contar os livros.
A sala estava o que se podia chamar “arrumada”. A dona Otília estivera ali de manhã e, por onde ela passava, nada ficava torto, desalinhado ou poeirento. Num primeiro olhar, ninguém diria que esta divisão tinha livros. Mal nos apercebiamos de alguns sobre a mesa, outros sobre o piano, mais uns junto ao sofá, outros no parapeito da janela, outros… Comecei a contar. 184. Cento e oitenta e quatro livros naquela sala. Eu nem acreditava. Estavam por todo o lado. Mal comecei a reparar neles, a sala transformou-se num ninho de víboras. Havia livros em cima, por baixo, ao lado e atrás do sofá. Nas mesas, nas cadeiras, dentro dos móveis, e até, espanto dos espantos, alguns arrumados nas prateleiras.
Transferi a obsessão para o resto da casa. Cozinha, casas de banho, corredor, quartos, armários e despensa. 1525. Mil quinhentos e vinte e cinco.
É claro que o meu súbito frenesi não passou despercebido à tia Júlia. Enquanto eu contava os livros na despensa (onde fui descobrir a “Mensagem” de Fernando Pessoa entre as latas de grão e o acúcar) ela veio meter o nariz para me perguntar, “Estás à procura de alguma coisa?”
“Não, mas adivinhe o que achei entre as latas do grão”
“A Mensagem, de Fernando Pessoa”.
“Como é que sabe?!”
“Fui eu que o pus aí. O que estás a fazer?”
“Estou a contar os livros que tem em casa”.
“Oh, mas aqui em casa não há quase livros nenhuns! Eu detesto estar sempre a tropeçar neles e ponho tudo no sotão.”
“Há um sotão neste prédio?”
“Toma!” Tirou do bolso uma chave e deu-ma. “Vai lá ver o sotão e deixa-me a despensa em paz.”