O mal dos livros

04/08/2006

002 - A carta

Salzburgo, Dezembro de 2005

Querida Joana:

Esta bem pode vir a ser a carta mais longa da minha vida e suponho que acabará por a conter, para que percebas. Pelo menos para que tenhas uma idéia melhor do que se está a passar. Não que contar-te a história da minha vida te vá permitir perceber tudo o que se passou porque nem eu consigo ainda tirar grande sentido de tudo isto (e, francamente, tenho até algum receio de o tentar fazer…). Mas sinto que to devo.
Cheguei aqui hoje, ao fim da manhã e, mal larguei as malas no hotel, saí à procura do Jaime. Tanto quanto sei, não está em nenhum hotel, mas também só fui a alguns mesmo no centro. A propósito, Salzburgo é uma cidade estupidamente bonita (apesar da pirosa, assustadora, fatigante, ubíqua, omnipresença de Mozart) mas, como calculas, não estou com uma disposição de turista. Se estivesse com o Jaime, num dos nossos passeios, seríamos verdadeiramente as irmãs Schlegel, como as mamã nos chamava, a meter o nariz em tudo o que fosse igreja, museu ou livraria. A tomar cafés e chás em esplanadas. A apreciar vistas panorâmicas… Mas está frio, um frio de rachar, e eu estou sozinho como a merda e Salzburgo começou a deprimir-me. Ou, para ser mais exacto, a deixar-me mais triste do que preocupado. O tempo estava carregado de nuvens logo quando aterrei e só tem ficado pior. À tarde começou a chover, mas à noite é bem capaz de nevar, com o frio que está. Voltei para o meu hotel e pedi as páginas amarelas na recepção. Passei metade da tarde a ligar para hotéis. Nada.
Enfim… depois desisti e tenho estado aqui às voltas, como um animal na jaula sem saber o que fazer. O que estou eu aqui a fazer?…
Há bocado dei por mim a ter pena de não saber rezar. E depois enfureci-me comigo mesmo por estar a ser tão estúpido a ponto de ter um desvarío cristão. Mas é o desespero, sabes?… eu sei que sabes…
Espero que não estejas zangada comigo mas, como espero que venhas a perceber depois de leres isto, fiz o que o meu coração mandou. (É tão antiquado, falar assim. Tão novelista e vitoriano… que importância tem o meu coração no meio disto tudo?) Mas também sei que, se não tivesse seguido aquele impulso, teria ficado retido em Portugal. De certeza que não me deixavam sair do país.
Espero que a polícia não vos esteja a dar muitos problemas. A minha mãe tentou telefonar-me mas eu não estou ainda em condições de falar com ela. Mandei-lhe só um sms a dizer que estou bem, que está tudo bem.
Mas não está nada bem. Há semanas que nada está bem. Desde que a tia Júlia morreu que tudo se tem estado a desmoronar. Tem sido um pesadelo. Um “mareritt” — a palavra norueguesa é bem melhor, neste caso. Significa, numa tradução muito livre e misturada com o “nightmare” inglês (que afinal tem a mesma origem), um cavalgada nocturna num cavalo selvagem. É isto que verdadeiramente sinto. Que me montaram na garupa de um dos cavalos do apocalipse. Sem sela. E eu estou a fazer os possíveis para me aguentar. Para não cair e ser esmagado por cascos em fogo.
A minha mãe vai-te ajudar, vais ver. Ela tem um espírito prático, verdadeiramente germânico.
Mas nada…nada, Joana, percebes?, nada me vai fazer deixar de sentir remorsos por te deixar assim, com a casa…não, com a vida, toda coberta de sangue, manchada de horror.
A única explicação que há para isso é o meu amor pelo Jaime. E é isso, principalmente, que eu te vou tentar explicar.

2 Comentário(s):

Uma das razões porque tantas histórias de suspense/terror/crime têm narradores na primeira pessoa é por causa daquela simples regra de que quanto menos se explica/mostra mais medo se consegue causar. Com narradores neutros na terceira pessoa, logo omniscientes, o Escritor corre sempre o risco de o Leitor se voltar para ele e perguntar “Se sabe, porque é que não diz?”. A regra básica apoia-se na evidência de que, deixando espaço à imaginação do leitor, este usará os seus piores medos para preencher o vazio.
Se eu escrever “Eu cometi o pior dos crimes”, para algumas pessoas isso será adultério, para outras chacina sangrenta de criancinhas, para outras sair à rua vestido com riscas e bolas, ou, para a minha mãe, destruir uma caixa tupperware.
Daí que, dentro deste género, os escritores preferem sempre defender-se e munir-se com a ignorância dos seus narradores-personagens para poderem deixar importantes espaços em branco.
Um dos mais perturbantes livros de fantasmas, “The turn of the screw” de Henry James, é precisamente narrado na primeira pessoa e a história emerge entre amigos sentados à volta da fogueira. É o narrador que urge o leitor/ouvinte dizendo logo de início algo como: “Eu sei que é difícil de acreditar no que vou contar, mas eu vivi isto…”
Também “Frankenstein” de Mary Shelley é narrado pelo próprio Frankenstein.
“O estranho caso do Doutro Jekyll e Mr. Hyde” de Robert Louis Stevenson, divide-se em três partes distintas, primeiro uma exposição quase jornalística dos factos, mas depois, o cerne verdadeiramente perturbante da novela vem dos dois últimos capítulos, os testemunhos pessoais e de própria voz do Doutor Lanyon e do Doutor Jekyll.
Outros bons exemplos são muitas das histórias de H. P. Lovecraft, que, mesmo quando não usa a primeira pessoa, se esconde por trás de um anónimo jornalista, como em “O estranho caso de Charles Dexter Ward”, narrando os factos com uma frieza que, por contraste com os eventos inexplicáveis e sobrenaturais, consegue afectar ainda mais o leitor.
O clássico maior do terror, “Drácula” de Bram Stoker, usa a sua própria estrutura para conferir “legitimidade” à história narrada. O que o autor nos fornece é simplesmente uma sucessão de documentos, cartas, telegramas, diários, onde, através de um caleidoscópio de visões pessoais das personagens, olhamos para uma história que parece “completa” mas que está cheia de “buracos”.
Tendo isto em conta, é claro que para contar esta história, tinha de a contar através da própria boca das personagens.

By Blogger Daniel J. Skråmestø, at 2:58 da tarde  

A irmãs Schlegel são as personagens principais de um dos meus livros/filmes favoritos: "Howard´s End" de E. M. Forster.

By Blogger Daniel J. Skråmestø, at 2:59 da tarde  

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