O mal dos livros

18/08/2006

005 - A cicatriz

Voltei a ler o que te escrevi sobre aquele episódio do velório do senhor Augusto e percebi que, de facto, até aquela altura, a casa da tia Júlia era um território inexplorado para mim, com sítios proibidos, assustadores mesmo. E é muito estranho pensar nesses termos sobre um sítio que se tornou um lar para mim e no qual nada me é estranho. Nem mesmo o quarto da tia Júlia, que fora antes o santo dos santos, porque, nos últimos anos, durante a doença dela, juntávamo-nos todos aí, como se fosse a sala, como se nada se passasse…E sabes, nessa altura, nem por um momento me lembrei que fora naquela mesma cama, onde a tia Júlia ia morrendo aos poucos, que eu vira o homem de negro sentado ao lado do senhor Augusto. Nem quando me sentei no mesmo sítio onde ele se sentara e disse ao Jaime, igualmente drenado de sentimentos, constatando o facto, as mesmas palavras que dissera ao homem de negro: ela está morta.

Outra coisa que também se torna evidente no que escrevi. É que, de certo modo, vinte anos depois, continuo sem ter uma noção realista do que se passa à minha volta. Que tenho andado a viver como se a vida fosse uma festa, quando afinal é um velório.

Perdoa-me, Joana. É difícil combater toda esta morbidez quando durante uma semana (ou uma vida) se anda encharcado em morte e em sangue (E isto literalmente! A propósito, a ferida já se nota pouco. A cicatriz vai ficar grande, de certeza, mas fica um pouco escondida pela barba, que estou seriamente a pensar deixar crescer, e só aqui no quarto é que tenho tirado o cachecol. É estranho olhar-me no espelho. Fico mesmo diferente de barba. Bastou uma semana sem a fazer. E sinto-me diferente, também. Sabes, acho que estou a precisar de chorar, para verdadeiramente voltar a mim, mas estou tão cansado que nem isso consigo fazer…)

Enfim, perdoa-me todas estas digressões mas é difícil não me perder. Li e reli o que já escrevi e percebo que isto não será útil apenas para ti. Eu preciso voltar a sítios da minha vida que são como aquele corredor da casa da tia Júlia que achei tão comprido e escuro aos cinco anos. Agora aos vinte e cinco sei perfeitamente onde estão os quartos, a despensa, a cozinha. Sei onde vai dar cada uma das portas. Mas não é o hábito que torna as coisas mais compreensíveis. O hábito cega-te. Eu preciso voltar a esse corredor e tentar perceber o que vi quando abri as portas, em diferentes momentos da minha vida. Tenho a certeza que será aí que vou achar a pista de que preciso agora para encontrar o Jaime. As páginas amarelas de Salzburgo são inúteis. Talvez até consiga perceber do que é que ele anda a fugir (ou o que anda a combater?). Porque, sabes, eu tenho uma séria suspeita do que é, mas, como o Dom Quixote alternativo, eu, neste momento, se calhar preferia não acreditar em gigantes…

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