O mal dos livros

22/08/2006

006 - O Jaime

Que acharás tu do Jaime? Tu só o viste duas vezes e ambas foram…bem…chamemos-lhes… circunstâncias invulgares.
O Jaime tem exactamente a mesma idade que eu (e a mesma que tu, claro). Isso, as viuvezes da minha mãe e da tia Júlia e a nossa vizinhaça foi o que de início fez com que passássemos tanto tempo juntos.
Mas o que acho curioso, agora que olho para trás e vejo a mão da tia Júlia em tanta coisa, é que, embora ela cuidasse da nossa educação com igual interesse, nós nunca estudámos juntos na mesma escola. O Jaime era sempre posto em escolas particulares, liceus finos, universidade privada e eu estive sempre no ensino público.
Só passávamos as tardes juntos e, mesmo assim, muitas vezes, eu tinha de esperar que ele acabasse os trabalhos de casa, porque os meus faziam-se em meia-hora enquanto que os dele levavam a tarde quase toda. Mas eram depois as poucas horas ao fim do dia que valiam. Quando brincávamos juntos.
A minha mãe chegava antes do jantar para me vir buscar, vinda da universidade. Tão exausta que mal conseguia cozinhar. Mas, apesar dos meus pedidos insistentes, ela raramente cedia a deixar-me ficar em casa da tia Júlia para jantar. Acho que ela queria esses momentos só para nós, mesmo que eu comesse a sopa de trombas, a pensar na nave espacial de legos que eu e o Jaime tínhamos começado a construir. E insistia em rever comigo os trabalhos de casa. Eram sufocantes, os trabalhos de casa. Uma idiotice. E as nossas noites, passadas frente à televisão, uma seca. Eu não me interessava pelas novelas e a minha mãe adormecia no sofá em menos de vinte minutos. Era nessas alturas que a ausência do Jaime se assemelhava a uma dor. A minha mãe a ressonar, a sala iluminada pela aura inane da televisão, e o resto da casa às escuras. E a minha solidão.
Para além do Jaime, os meus únicos amigos eram os livros. O que não era exactamente saudável. Não deve ser preciso explicar-te em detalhe o que isto fazia à minha vida na escola. Eu era o menino que fazia sempre os trabalhos de casa, sabia tudo e tinha sempre boas notas. Odiavam-me de morte, na escola. E eu odiava aquele culto diário da estupidificação metódica.
Quando foi que a minha mãe cedeu à tia Júlia? Não sei precisar a data. Mas começou certamente com as minhas aulas de piano. E de norueguês.

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