O mal dos livros

27/09/2006

012 - A tia Julia

Eu nunca compreendera bem as reticências que a minha mãe punha em relação à tia Júlia. É que, apesar de termos começado a passar muito tempo lá, ela nunca deixava de manter uma certa frieza (que nem sequer lhe vinha dos genes alemães). A princípio, suponho que, de um modo inconsciente, liguei isso ao suicídio do meu pai mas, como esse era o assunto de que nunca se falava, apesar de estar no cerne do nó que unira as nossas famílias, deixei que continuasse imerso nas névoas do tabu.
Eu já devia ter uns treze anos quando, finalmente, me tive de confrontar com uma parte da vida da tia Júlia que, embora estivesse estado sempre presente, eu nunca tinha verdadeiramente visto, ou tomado consciência que existisse.
Aconteceu da maneira mais prosaica, ao fim de uma tarde em que a minha mãe me pedira para ir comprar batatas e cebolas à mercearia da esquina (que fica precisamente na esquina da rua entre a da tia Júlia e a nossa). Eu esperava para pagar, enquanto uma freguesa à minha frente falava com a dona do estabelecimento. Eu não seguia a conversa porque olhava para os chocolates, mas a certo ponto uma delas começou a falar de uma mulher do bairro que, pela descrição, eu identifiquei imediatamente como sendo a tia Júlia, embora o nome não fosse mencionado. E depois, referiu-se a ela como bruxa. E não era um insulto, ou mera difamação, porque (e isto foi o que mais me surpreendeu), ao dizer a palavra, a sua voz baixou para um tom de grande respeito, ou reverência mesmo.
Demorei mais tempo do que o costume a regressar a casa, pensando no que de facto aquilo queria dizer. Nós éramos todos tão pouco religiosos e supersticiosos. Principalmente a tia Júlia que, todos os natais, insistia em nos contar a “verdadeira” história de São Nicolau, pondo especial ênfase na parte das criancinhas esquartejadas dentro da salgadeira (que, admito, era a nossa parte favorita). Desmistificar, era a palavra de ordem para tudo o que a tia Júlia dizia e fazia. Porque lhe davam então as vizinhas o título de bruxa?
Aquilo perturbava-me, mas não devido a essa palavra … a quê, então?
Ao fundo da rua, a Sé de Lisboa estava já iluminada e eu lembro-me de ter sido essa uma das vezes em que mais fortemente uma vertigem histórica se apossou de mim. É raro pensar com tanta consciência em tudo o que já se passou no sítio onde vivemos. É uma colina de Lisboa que já viu fenícios, gregos, romanos, visigodos, mouros, cristãos. As nossas ruas ficam entre a Praça do Rossio, onde já se queimaram bruxas, judeus e sodomitas, e a Prisão do Limoeiro onde, mais recentemente, se torturaram, não com menor requinte, intelectuais e liberais diversos. Ou seja, tudo pessoas com quem a nossa família reúne afinidades. E no entanto, como a minha mãe costumava dizer, “Que tempos abençoados estes em que vivemos, apesar de tudo". E depois vinha abraçar-me e acrescentava: “Sabes a sorte que temos? Eu, que nasci depois da guerra, e tu, que nasceste depois da ditadura? És uma criança abençoada, António. Aproveita a sorte de teres nascido agora. Olha só os livros todos que tens à tua disposição, tudo o que há no mundo na tua mão, sem censura e sem limites”. (Ela ainda repete isto, de vez em quando, quando se emociona com a internet, por exemplo.)
Eu, naquele momento, saco cheio de batatas e cebolas, a caminho de casa, senti-me de facto previligiado, porque a minha mente, por segundos, quase conseguia ter a noção da enormidade do que se passara ali, naquela rua, naquela colina, naquela cidade, para que eu pudesse ir assim, tão despreocupado para casa, sem medo de bruxas. Uma vertigem histórica em que desfilava uma crescente erosão de preconceitos e superstições que permitiam que eu, nesse preciso momento, soubesse que os meus valores me permitiriam olhar lucidamente para este perturbante facto, de ter uma “bruxa” na família. E essa lucidez, que eu sempre tenho prezado tanto, devia-se, deve-se, precisamente, à tia Júlia.
Percebi assim que não era de facto a palavra “bruxa” que me perturbava, mas a implicação de que havia algo na vida da tia Júlia que me era desconhecido, talvez vedado. Ou, pior ainda, algo que ela ocultava de mim julgando que eu não fosse capaz de compreender.

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