O mal dos livros

14/09/2006

008 - Exorcismo dos sete demonios

No dia seguinte, ao chegar da escola, dei com o piano totalmente esventrado na sala. O Jaime já tinha preparado uma platéia, dispondo os cadeirões de frente para o evento e sentara-se, em pasmo absoluto, a ver o afinador trabalhar.
Foi uma das tardes mais fascinantes de que me lembro. O senhor Pereira, que passaria a vir fazer-nos visitas semestrais, para além de se dar ao trabalho de limpar todo o interior do piano, substituir martelos, feltros, molas e cordas, deu-se também ao trabalho de nos explicar tudo o que fazia. E não se cansava de dizer, “É um milagre, o estado disto!”. Mas, quando a tia Júlia lhe explicou que provavelmente nunca ninguém o tocara, ficou-se a repetir, “Ah bem, ah bem…” E assim ficámos a saber como o comprimento das cordas define a altura dos sons, para que serviam de facto os pedais (ver a maquinaria toda a sair do sítio quando se carregava neles era entusiasmante) e todo o complexo movimento mecânico que transmite, com espantosa precisão, a pressão das teclas aos martelos que batem nas cordas.
Fomos excepcionalmente libertos dos nossos deveres da escola para observar aquele procedimento cirúrgico, com maior motivo ainda, quando começou a afinação das cordas. Foi aí que percebemos que éramos meros amadores a fazer gemer o piano. O senhor Pereira suava profusamente, alternando o esforço de puxar as cordas com o martelar intenso das teclas e os toques de diapasão (fascinante pedacinho de metal que, por precisar de tanta explicação, aumentou ainda mais a féria do senhor Pereira, que era pago à hora). O barulho para além de insuportável era irritantemente repetitivo. A tia Júlia até se lembrou subitamente de ir às compras e a vizinha de baixo veio bater à porta para saber o que se passava.
E no final, o senhor Pereira, embora suado, coberto de pó e já farto das nossas incessantes perguntas e desastrada vontade de ajudar, brindou-nos com um pequeno concerto, abrindo com uma escala que correu o piano de cima abaixo e pôs o instrumento a ressoar tão harmoniosamente que o Jaime até me disse baixinho, ao ouvido: “ É como se fosse a Madalena, depois de exorcizada dos sete demónios”. E eu concordei, sem sequer me rir. Aquilo era pura magia, milagre, ressurreição. Era como se fosse outro piano.
Depois, foram as mãos do senhor Pereira que sofreram uma transformação, deixando de ser umas salsichas peludas e brutas que martelavam as teclas numa barulheira infernal para as acariciar velozmente apenas com as pontas dos dedos, produzindo sons que só podiam ser pura manifestação de divindades celestes.
A tia Júlia veio então sentar-se ao nosso lado. E, quando o senhor Pereira acabou, tirou-me o sorriso da cara informando-me que no dia seguinte eu ia começar a aprender a tocar piano. Eu fiquei pregado no chão, esmagado pela enormidade do que me era pedido, mas foi assim que compreendi que ela nunca fazia promessas em vão.

1 Comentário(s):

Nesta parte agradeço ao senhor Albano que era quem ia a minha casa afinar o piano

By Blogger Daniel J. Skråmestø, at 8:35 da manhã  

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